Chuvas escuras. Noites esparsas.

João Mendonça
3 min readJan 26, 2019

Já andou na rua à noite de olhos fechados? Não noitinha, tarde.
De preferência enquanto chovia. Dá pra sentir um silêncio salpicado de luz amarela. A guiar seus passos num vazio quisto o reflexo das luzes na fina camada fria de água que cobre o cinza do asfalto. Pouco vapor. Um carro vai para não se sabe onde, encontrar-se com alguém que —como eu — espera.

Andrew Neel • Unsplash

Dá para sentir uma espera errante que corre a sola do pé, desenhando um linha do tempo bem na planta. Esquisito é começar pelos calcanhares. Tem um vento que bate em seu cabelo bem ali acima das orelhas e é como se ouvisse as vozes de um roxo escuro que tenta negar o breu. Um sussurro selvagem que tenta.

Numas árvores juntas, ali um pouco longe, o negro. Notas de folhagem tilintam a pretensa pausa de um fuga marcada às batidas da marcha peito.
O coração já bate na panturrilha, os joelhos se dobram um pouco como pescoços. Quando a cabeça se inclina fica a dúvida se é reverência ou entrega. Fitar o chão. Reunir algumas forças para encarar novamente a ausência de alguma cor. Presença se desenha sob o escuro. Assim como quando os olhos se fecham antes de dormir, a escuridão é tela em branco deste sonho. Mas ainda são meus olhos mirando o estio de matiz. Eu nunca iria naquela direção.

Alma levada a pingos. Num apartamento, do mais alto andar, alguém pensa ter ouvido o grito inaudível que se lança em cada esquina procurando ecos. Urros não costumam pedir licença para rasgar a garganta. Sejamos gentis, não deixemos represas estourarem sem noticiar detalhadamente os responsáveis. Finjo ter de me lembrar o número, como se já não tivesse se toque na lista de tatos. Educado da minha parte me conter. Quem sabe eu pense em algum roteiro breve para entreter uma falta sua. Não há elenco que aceite o papel de silenciar no palco. Sob o poste da avenida, esboço um expressão esperando aplauso. Uma garota ria dentro do carro, passou tão rápido. Talvez se me sentisse tão confiante ao volante de mim como aquele rapaz. Me lembro quando tudo que importava era velocidade. Ai de mim se esquecer o boleto do seguro.

Nunca senti. Assim, sem riscos. Se existe uma paz branca, acho que sou quase um Pollock. Quer discutir se tem valor? Nunca fui abstrato o bastante para galerias e nem concreto demais para artigos. Prefiro os indefinidos. Nunca imaginei aquele diálogo sobre incertezas naquele filme, era como se uma faixa do tempo tivesse se esticado por hora. Viu este exemplo? Não é “o” momento, mas um momento ampliado e um pouco borrado pelo astigmatismo poético e a miopia de nunca imaginar um final. Recortes. Tanto gente que faz um trabalho incrível com colagens. Não consigo. A viscosidade da cola sob a textura não é nada páreo para o crescendo seco da tesoura na página. Colados, como eu repensaria a composição?

Ficamos assim, sem elos então. Combinado? Elo, corrente. Corrente, limite. Tão corajosos como um chihuahua em coleira curta no vasto quadrado quintal duma casa de subúrbio onde vive — se é que vive — um casal aposentado resfriado pelo tempo como aquela deliciosa torta que de tantos compromissos nos esquecemos de comer.

Figuras de nós, extraídas das histórias ditas reais. Sem um contexto a mais. Encontrando a calma na mesma pilha. Afinal, esta é a única coisa que nos une, acaso una. Acaso, una. Nos faça o favor. Voltei antes de pensar no que era amor. Meu bem, apaga luz. Acabei de chegar. Deixa escuro, quero te encontrar.

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João Mendonça

Onde eu for escrito como abreviatura quero ser lido por intenso.